domingo, 9 de agosto de 2009

Conhecendo Ella II

Procurei observar sua rotina buscando respostas para suas incoerências. Após os cuidados com a horta, entrava no mar para um mergulho. Neste primeiro dia nadou por dezenove minutos e meio, brincou com as ondas por mais oito minutos e quarenta e três segundos.


Fiquei admirando de longe, sentado sobre a areia ligeiramente úmida da praia. Alguns dos meus componentes são muito sensíveis e podem sofrer danos irreparáveis durante uma submersão na água. Por isso me mantinha afastado do mar.


Sabia estarmos a setecentos e trinta e quatro quilômetros e oitocentos e dezenove metros de distância da cidade continental mais próxima. Desde então, olhava para o mar buscando desvendar se algum dia conheceria outro lugar, além da Ilha.


Mais tarde, prosseguindo em sua rotina, Ella me mostrou alguns de seus desenhos e projetos mais novos. Fiz algumas perguntas e observações técnicas, para as quais fui programado. Atenta, me ouviu rebatendo cada um de meus argumentos com uma firmeza inabalável e explicando cada detalhe. Havia muito a aprender com ela.


Minha criadora mostrou sua habilidade em transformar matéria bruta em carcaças para seus novos robôs e projetos. Esta parte da rotina era executada por meu antecessor. Apesar de ser muito habilidosa, acredito ser mais fácil para mim, que consigo levantar uma tonelada com um dedo, realizar este tipo de tarefa.


À tarde, Ella se dedica a suas atividades como consultora, algo muito além da minha programação atual. No entanto, me explicou muitos detalhes, com o tempo e alguma dedicação passaria a ajudá-la com esta parte de suas atividades.


Sua grande diversão era investir na bolsa de valores. Minha criadora contou animada:

– Fiz meu primeiro milhão investindo em uma pequena empresa que começava a despontar no mundo ainda pouco desbravado da internet. Posso te ensinar os princípios básicos e você pode usar o dinheiro do Banco das Ilhas para aprender a aplicar sozinho.


Ella parecia valorizar meu aprendizado, não queria desapontá-la. Pretendia pesquisar mais sobre a bolsa de valores, antes de utilizar o seu dinheiro. Mesmo sendo a conta com a quantia mais baixa dentre as quatro que possuía, desejava garantir retorno financeiro em meu primeiro investimento.


Fui convidado a jantar, um tanto contrariado por utilizar alimento desnecessariamente. No entanto, para minha criadora era importante compartilharmos as refeições com fins experimentais. Precisava descobrir se meu paladar funcionava corretamente. Mais tarde, notei ser uma desculpa, na realidade ela sentia falta de companhia durante as refeições.


Estava programado para apreciar o aroma de uma boa comida. Apesar de não ter um apetite como os humanos, o agradável cheiro da truta recheada preparada por Ella, estimulou minha curiosidade por experimentar. Enquanto ela servia nossos pratos, estava muito disposto a degustar sua receita.


Na primeira garfada notei os sabores dos variados temperos se mesclando ao peixe: limão, sal, cebola, azeite, uma pitada de pimenta e alecrim. Apreciei o efeito desta mistura no meu paladar e questionava como ela conseguiu dar tanta vida aos sentidos de um androide. Não era a hora para este tipo de questão e falei:

– Adorei a diversidade de sabores junto ao peixe e champignons, está delicioso o seu prato.


Admirada com o elogio, comentou:

– Eu gosto de misturar vários tipos de temperos e buscar o encaixe perfeito com o alimento que estou cozinhando. Devo isto a minha mãe. Ela era muito inventiva na cozinha, éramos pobres e se preocupava em providenciar novas receitas pros alimentos mais baratos. – Os sentimentos dela ao comentar sobre a mãe e a pobreza me pareceram conflituosos, ainda não conseguia distinguir, eram novos naquele semblante.


Prosseguiu lembrando de uma passagem de sua infância:

– Minha mãe tentava fazer de um sanduíche de mortadela uma alegria. Inventava sorrisos no sanduíche com legumes e verduras. Sua intenção era me fazer gostar de alguns alimentos que normalmente eu repudiava. – Continuou no mesmo tom de voz grave, contava a sua história com pequenas pausas, seu olhar foi se tornando menos brilhante.


Observava suas novas reações com interesse, procurando decifrar os sentimentos expressos ali. No entanto, ainda não os conhecia. Aos poucos percebi algo diferente, como se estivessem apertando alguma das minhas engrenagens forte demais. Não sabia definir o motivo para tal, porém estava intrinsecamente ligado às emoções da minha criadora.


Ella contou um pouco mais sobre sua família:

– Durante as refeições, meu pai me incentivava a comer os legumes e falava sempre a mesma frase: “O sanduíche está sorrindo para você, filha”. Na verdade, eu ficava preocupada em apagar aquele sorriso. No final, a fome sempre vencia. – Nesta última frase, levantou os cantos dos lábios num movimento contrário a sua expressão facial e ao tom de voz.


Procurava ler sua expressão, mas tudo aquilo era muito novo para mim. Olhava para a minha criadora tentando encontrar novamente o sentido de suas frases entrecortadas, o sorriso em seus lábios contrários aos olhos opacos. Havia muito mais ali, não conseguia decifrar e isto me incomodava.


Ella continuou a contar as histórias de sua infância. Falou sobre seus pais e as refeições compartilhadas. Durante seus comentários pude notar certa empolgação, misturada a algo mais intenso, seus olhos estavam repletos de água. Achei inusitado e assustador, aquilo não me parecia certo ou normal.


Como se nada estivesse acontecendo, continuou:

– Minha mãe era uma bela ruiva com olhos verdes muito claros, parecem com a água do mar raso. Gostaria de ter um pouco da sua beleza, mas só herdei seu tom de pele. Sou idêntica ao meu pai.


Buscava compreender o significado de cada uma de suas palavras, gestos, olhares e oscilações da voz. Capturar seu semblante para decifrar o significado dos olhos orvalhados como as pétalas de flores pela manhã.

Estava completamente intrigado. Aquela penúltima frase equivocada ficou gravada em minha memória rodando muitas vezes. Para mim, todo ser humano é belo e único em suas particularidades singulares.


9 comentários:

  1. Mitoca, vou ser a primeira a comentar! :D

    Volto já com o coment. *-*

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  2. Miiiiiitaaaaa! *-*

    "Olhos orvalhados como as pétalas de flores pela manhã"...
    Que lindo!
    Como você quer que eu ainda consiga juntar palavras para formular frases depois de uma atuh tão perfeita como essa?

    É tão lindo ver as descrições dele.
    Já que pra ele tudo é novo, ele dá muito valor a tudo, a cada gesto mínimo, aos quais a maioria de nós - sem saber que eles são os mais importantes e marcantes da vida - muitas vezes esquece de dar importância.

    Fiquei com peninha quando ela falou da infância.
    E curiosa pra saber mais sobre a vida dela, principalmente o que aconteceu a seus pais e por que ela se isolou na ilha.

    AMEEEEEEEEI, tia Mita!! *-*

    Beeeijos.

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  3. Oi minha sobrinha querida!
    Nem se preocupe, a maioria tá comentando lá no azul mesmo.
    Não exagera! Eu fico sem graça...

    Realmente, ele enxerga a vida e as coisas como uma criança pequena, mas sabe se expressar melhor que elas.

    As revelações vão acontecer aos poucos, a medida que o Dois for descobrindo, a gente descobre também.

    O motivo dela se isolar na Ilha, só posso dizer uma coisa: está bem longe de ser revelado!

    bjos & bjos, *.*

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  4. Mita, o azulão fechou definitivamente?
    Fui entrar e disse que eles estavam "de mudança". :(

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  5. Oie Ingrid,
    Parece que mudou de vez mesmo.
    Abre direto no beta agora, Bem... Tivemos duas semanas a mais para curtir o azul.
    Agora é aturar o beta.

    bjks, *.*

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  6. Bom, mas isso não altera muita coisa.
    Você sabe que lá, aqui ou em qualquer outro lugar sempre terá uma leitora fiel. :D

    Quero mais atuh, Mita!
    Por que quarta não chega logo??

    :*

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  7. Ah! É verdade, mas acho que muita gente nem anotou o blog... Paciência.
    Eita... Vai demorar um pouquinho né... Preciso de tempo pra escrever e jogar! rsrsrsrsrsrs

    bjks, *.*

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  8. Oi Mita!
    Ai que linda essa atuh... Como a Ingrid disse, o Dois consegue descrever as coisas de um modo tão gracioso, já que para ele tudo é muito novo.
    Cada vez que leio uma atuh, sinto mais vontade ainda de ler mais.
    Pois é! O azulão fechou de vez. Estou pasma! Quando digitei o endereço do site, e entrou no beta, tive que atualizar a página e entrar umas duas vezes novamente para conseguir receber a informação. Estou tão triste... =(
    Bom, é isso mesmo. Vou continuar acompanhando, lógico!
    Beijos...

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  9. Oi vic!
    Pois é...Ele é quase como uma criança, enxerga o mundo como novidade e com pureza.
    Nem fala do nosso azulão.. Já estou órfã. Mas fazer o que? Pior é que meus diários foram todos sem fotos e só parte deles. Paciência, disseram que vão consertar...
    Fico feliz por ter você por aqui!

    bjks, *.*

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