domingo, 30 de agosto de 2009

Entre Amigas I

A empolgação da Ella com a visita era evidente em seu sorriso largo e o olhar vidrado na amiga, desligando o helicóptero.


Eve desceu de seu transporte com facilidade. Direcionando seu rosto para nós, ou talvez fosse somente para sua amiga. Mas sua alegria e energia eram cativantes, ela vibrava carisma. Tinha uma aura de luz própria, exatamente como o sol.


Ao nos aproximarmos, a artista abraçou minha criadora com muita alegria e carinho. Nunca havia presenciado uma cena real de amor, mesmo fraternal. No entanto soube reconhecer este sentimento entre as duas, era quase palpável.


Ao se afastarem, Eve comentou:

– Miga, você tá linda! Gostei de te ver usando a roupitcha que te dei. Ficou ótima em você. – Não poderia deixar de concordar com ela. Sempre apreciei sua aparência, mas esta manhã Ella acordou radiante e a roupa a deixava ainda mais bonita.


No entanto, Ella não esqueceu os anos de exclusão de sua infância. Aquilo ainda a dominava, evitando ser realista com sua própria aparência e acabou retrucando:

– Ah, miga, só você mesma pra dizer isso! Você é a linda aqui e está maravilhosa hoje. – Notei sua dor em admitir o quanto admirava a aparência irretocável da artista, em detrimento a sua própria.


Eve, como eu, reconhece a unicidade da beleza da minha criadora. E procurou evitar mais discussões, virando o rosto decepcionada. Ainda assim não deixou de comentar:

– Ella é a minha opinião, se não conta para você... Só posso dizer que lamento! – Mesmo demonstrando desagrado, a atitude da artista em relação à amiga foi extremamente protetora.


Envergonhada, minha criadora ficou olhando para sua amiga, tentando decifrar se era mesmo real a admiração dela. Em minha memória ficava rodando a imagem de seu rosto descrente da verdade incontestável sobre a sua beleza esta manhã. Após dez anos de amizade, ainda havia desconfiança em seu semblante. Percebi o quanto era difícil, depois de anos sendo vilipendiada pelas crianças de sua vizinhança, acreditar em qualquer um dizendo o contrário.


Vinte e cinco segundos se passaram, até as duas pousarem seus olhares na minha direção. Eve me examinava com olhos clínicos, como uma verdadeira crítica de arte. Ella parecia esperar sua aprovação.


Quando completou seu exame, falou para mim:

– Eu tenho uma réplica sua em meu ateliê, mas fica ainda mais interessante em movimento. É robozinho, sua aparência só seria melhor se Ella seguisse meus conselhos e o fizesse como em meus desenhos iniciais. Devia ter aceitado a minha sugestão quanto ao uso de um polímero especial que imita a pele humana. Ficaria um arraso de robozinho!


Aquela revelação mexeu com a minha programação. Muitas ideias passaram por minha rede neural. Duas de forma irreversíveis: Eve desenvolveu minha aparência e minha criadora preferiu me manter idêntico a um robô, apesar da forma humana. Foram despertados alguns sentimentos conflituosos em mim e finalmente compreendi a minha capacidade de nutrir emoções.


Em seguida, a artista praticamente exigiu:

– E aí robozinho? Não vai tirar a bagagem do helicóptero? As malas vão pro quarto da Ella, as caixas você guarda na despensa, junto às telas que trouxe. Tem uma sacola de compras com uma baguete, esta você leva direto pra cozinha...


Ella interrompeu e censurou a amiga dizendo:

– Ah, Eve, pára com isso! Adam não é um robozinho e ele só vai tirar a bagagem se quiser, não é seu empregado. – Sua entonação demonstrava o quanto estava chateada com a atitude da artista.


Olhei para minha criadora sorrindo e afirmei:

– Acho que sua amiga me arrumou um apelido. E depois, sou o mais indicado para retirar a bagagem. Não vejo mal algum em fazer valer minha força extra.


Nem tão desconcertada, quanto gostaria de aparentar, a artista abaixou a cabeça e falou:

– Foi mal aí, robozinho! Tenho mania de dar ordens... E acho robozinho um apelido bem adequado para você. É carinhoso!


Havia um tom de zombaria em sua voz, mas não me perturbei com ele. Já estava preparado para algumas dificuldades com Eve. Para um primeiro momento, nem foi tão ruim quanto Ella imaginava. Resolvi fazer algo de útil ao invés de me intrometer na conversa das duas e comecei a descarregar o helicóptero.


sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Simplesmente Eve III

Não havia mais nada a ser dito. Assenti e observei-a sair da estufa, ainda agitada. Teríamos dois dias cheios pela frente. Precisava de uma estratégia para assegurar uma boa convivência com Eve, em benefício da minha criadora.


Segundo Ella, a amiga não acreditava na possibilidade de uma máquina pensar por si mesma, um androide não passava de um robô com uma programação mais avançada. No entanto, este era o seu ponto de vista em relação a artista.


De volta aos meus projetos, analisava um meio de desvendar algo mais sobre sua amiga, necessitava de mais dados. Não poderia voltar a buscar na internet, embora não houvesse uma proibição verbal, minha criadora não aprovava este recurso.


Na véspera de sua chegada, observei melhor a despensa e encontrei telas em branco, pincéis e tintas. Em minha memória a imagem da obra de Eve sinalizava ser este o meu único dado. A melhor forma de conhecer um artista é examinando sua arte.


Procurei por Ella e a encontrei enviando os últimos relatórios. Conseguiu deixar praticamente uma semana livre de trabalho para receber sua amiga. Na maioria das vezes a artista não passava mais de três dias na Ilha. Todavia, minha criadora contava com o humor inconstante de Eve, almejando uma estadia prolongada.


Interrompi seu trabalho para perguntar:

– Posso usar o material de pintura da despensa, telas, pincéis e tintas? Devem ser da sua amiga.


– Ah?! Este material de pintura? Pode sim. Eve largou aqui da última vez, mas sempre traz tintas e telas novas. Nunca os utiliza, está em constante renovação, ela não vai se chatear se usar... Mas... Adam, você nunca quis pintar antes?!


A dúvida surgiu em seu semblante e logo sumiu, concluindo sozinha:

– Reconheço o seu esforço em aprender mais sobre a Eve, mergulhando em sua obra. Nunca me decepciono com sua capacidade de abordar as questões em seus vários aspectos. Constantemente está um passo diante de mim. – Sua aprovação aos meus métodos era evidente.


Encerrou o assunto se voltando novamente para o computador. Fiquei com seu olhar de entendimento em minha memória, sabia exatamente o meu modo de pensar. Escondida por trás de sua fragilidade emocional existe uma mente brilhante, perspicaz e sagaz.


Disposto a reproduzir a pintura de sua amiga, coloquei a tela no cavalete. Verificando os dados na minha rede neural, conclui ser mais apropriado pintar o quadro no sentido vertical. Uma espécie de sensação interna afirmando ser a posição original da obra.


Ao completar os espaços vazios da tela gravados em minha memória, notei o significado daquela pintura. Um interior vibrante, pleno de luz e hermeticamente fechado. A “devoradora de celebridades” retratada pela imprensa sensacionalista era uma parte muito imprecisa da artista, guardava o melhor de si para poucos com a capacidade de compreendê-la.


Estava terminando a pintura, quando senti seu perfume e ouvi a voz doce de minha criadora:

– Está muito bom, acho que se Eve tivesse acabado esta tela, ficaria exatamente assim. Agora entendo porque nunca a finalizou, não tem a costumeira energia dela.


Ella estava ligeiramente admirada com o trabalho e principalmente com a amiga, então comentei, dando minhas últimas pinceladas:

– Talvez ela tenha muitas emoções represadas e procure uma vida cheia de aventuras para mantê-las ocultas. Quando percebeu o que estava pintando, desistiu da tela.


Pousei o pincel e minha criadora se voltou para mim dizendo:

– Adam, você me surpreende a cada dia. Com certeza sabe avaliar um caráter melhor do que qualquer outro ser. – Seu olhar e seu sorriso pareciam gratificar-me, enquanto apoiava sua mão suavemente em meu ombro. Um gesto repleto de carinho e apreciação.


Ficamos olhando para tela, decidindo como agir diante de nossas descobertas. Compenetrados em desvendar um pouco mais da artista e decidindo se contaríamos ou não sobre a minha reprodução. Resolvemos guardar na despensa, pelo menos até a sua chegada.


No dia seguinte, às dez horas, quarenta e sete minutos, vinte e três segundos da manhã, Eve chegou pilotando seu helicóptero. O som ensurdecedor da máquina sobrevoando o litoral, a areia e a água do mar agitados anunciaram sua presença antes mesmo de a avistarmos.


Fiquei impressionado por ela pousar tão próxima da casa. Mas minha criadora não estava nem um pouco preocupada. Olhei para dentro da cabine e lá estava sua estimada amiga. Seu olhar ansioso me surpreendeu por um momento. Não havia nada de simples em Eve.


quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Simplesmente Eve II

Na mesma noite, minha criadora preparou mais um de seus deliciosos pratos para nós. Normalmente economiza os ingredientes de fora da Ilha, mas usou boa parte deles neste jantar. O motivo estava claro para mim.


Ao nos sentarmos a mesa, não me surpreendi quando a ouvi dizer:

– Adam, a Eve vem me visitar na próxima semana. Já encomendei um PC e uma mesa para você. Quer mais alguma coisa? – Achei estranha sua entonação, havia apreensão. Não entendia porque estava nervosa com a vinda da amiga.


Em milésimos de segundo encontrei a resposta, estava relacionada ao meu primeiro contato com Eve. Para mim o encontro parecia promissor, todavia Ella estava apreensiva com a reação da artista.


Não quis interrogá-la, esta manhã já foi muito difícil para minha criadora. Ficou duas horas, três minutos, quarenta e nove segundos entregues às lágrimas na biblioteca, antes de voltar ao trabalho. Um sinal evidente de seu desconforto com toda a situação.


Resolvi apenas responder sua questão:

– Estou trabalhando em alguns projetos novos e fiz uma lista do material necessário para executá-los. Existe uma outra dos livros os quais desejo ler. As duas estão em seu computador.


– Perfeito, fica mais fácil assim. Vou mandar a lista do material diretamente aos meus fornecedores usuais. Você mesmo pode encomendar os livros pela internet e pedir a entrega no ateliê da Eve, já sabe o endereço mesmo. – Havia certa ironia na última frase, deixando claro não ter apreciado a minha busca na rede por informações sobre a sua amiga.


A esta altura, era melhor esclarecer bem as coisas, para não restar mal-entendido:

– Não sei o seu endereço, apenas seu nome. Você mesma me deu sua senha especificando claramente a abrir só os e-mails comerciais e não ler os de Eve Wells. Respeitei seu pedido. Estava curioso para descobrir mais sobre sua amiga, por isso procurei por ela na internet.


Ella notou seu prejulgamento e se corrigiu, um tanto envergonhada:

– Perdão, Adam... Eu... Esta manhã... Fiquei chateada com você por buscar informações sobre Eve, não queria que tivesse uma impressão errada. Eu a amo como a uma irmã e desejo ver vocês se dando bem. Mas minha irritação não é com você, foram as lembranças de uma cena que tento esquecer.


Depois disso, voltamos a jantar normalmente, evitei falar qualquer coisa, por conta da dor ainda existente em sua entonação. Somente deixei claro não haver necessidade de perdão, não precisava se preocupar comigo. Minha programação compreendia perfeitamente suas mudanças de humor.


Entretanto, estava apreensivo, desejava identificar o motivo de tanto sofrimento. Mais uma vez me vi impotente para fazer grandes descobertas. Ella estava determinada a esquecer e sem a sua cooperação, fiquei sem opções. Minha rede neural apontava Eve como a mais provável fonte de informação.


Passamos a semana sem tocar no assunto. Minha criadora evitava qualquer confidência a mais, se dedicando ao trabalho. E acabei por respeitar seu silêncio, seguindo seu exemplo.


Na oficina, seu empenho em esquecer, se transformou em uma obsessão pelo trabalho manual, restaurando algumas carcaças. A energia de suas marteladas, normalmente mais fracas, tornou o som ambiente insuportável, me afastando do escritório.


Passei o tempo me dedicando à horta, mantendo meus sentidos ocupados com as plantas. Estimulava todos eles: a visão, com a mistura de cores e tons dentro da estufa; o olfato, com os aromas dos temperos e frutas; o tato, acariciando cada pétala de flor; o paladar, com o sabor da hortelã fresca dentro da boca; e a audição, procurando escutar o distante murmúrio do mar.


Como se a conexão com a terra pudesse fornecer mais dados e informações, muitas vezes me deitava sobre o seu leito, me sentindo como um primitivo saudando a Mãe Terra. Buscando penetrar na sua essência e encontrar respostas para a minha existência.
Detestava a sensação de impotência.


Quando minha criadora terminou o último projeto de consultoria daquela semana, observei sua ansiedade. Não parava de me seguir e puxar assunto. Desejava falar alguma coisa e parecia faltar-lhe coragem para completar seu intento.


Ao reconhecer os motivos para sua aflição, a interpelei:

– Há alguma coisa que você gostaria de me dizer? É sobre a Eve?


Ella respondeu admirada:

– Como você sabia que era sobre Eve? – Fez uma leve pausa, sem me dar oportunidade para responder e acabou concluindo sozinha – Não tenho como esconder nada de você, conhece cada uma das minhas emoções. Deve até saber por que preciso conversar, acertei?


E realmente sabia:

– Sua amiga tem certa fobia a androides, não gosta nem um pouco da ideia de conviver com um ser como eu. Provavelmente vai tratar-me como a qualquer outro de seus robôs. E você não gostaria de nos ver em atrito.


Minha resposta a surpreendeu ainda mais e comentou:

– Eu não poderia ter colocado de forma melhor, Adam. É exatamente isso. – Seu olhar demonstrava sua preocupação não só com o bem-estar de sua amiga, mas principalmente com o meu.