quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Puro Amor II

Estava ainda envolvido com as imagens e a história do seu passado ocupando minha memória. Procurando estabelecer um ponto de apoio, uma referência para me ajudar a encontrar o caminho do seu coração.


Meu desejo era ofertar-lhe todo o deslumbramento e contentamento desta tarde, quando descobri o prazer de estar em sua companhia. Se fizesse de um dia seu mais vívido e extasiante, seria um androide extremamente realizado.


Após o jantar, Ella se retirou para tomar um banho. Fui à biblioteca disposto a esperar seu retorno e aproveitei para continuar a leitura do Kama Sutra. Havia parado nos tipos de uniões e suas variedades de posições. Abri o livro com minha atenção voltada para o banheiro.


Minha audição estava ligada no cair da água enchendo a banheira. Fui enredado a visualizar minha criadora imersa na espuma. Em pouco tempo me transportei para o seu lado, já com aparência humana, em minha rede neural imaginava como seria ajudá-la com o banho.


Busquei voltar meu olhar para o livro, contudo estava completamente despreparado para os desenhos a seguir. Havia lido alguns romances, conhecia a anatomia feminina e masculina, sabia como os corpos se encaixavam. No entanto, a literatura da biblioteca fornecia poucos dados sobre o assunto, apenas as sensações do que ocorria entre um casal.


Ver aquelas imagens me transportou novamente para visualizações da mulher amada em meus braços, aconchegada ao meu corpo “humanizado”. A imagem brincava com minhas sensações, estimulava meus circuitos a novas conexões e esquentava a temperatura interna do meu sistema em dois graus.


Neste instante, o cheiro do sabonete de passiflora de Ella me despertou dos devaneios. Aumentando em mais um grau o calor do meu corpo. Eu precisava mesmo implementar o novo sistema de refrigeração, para não causar superaquecimento dos fios.


Deixei o livro de lado e minha criadora sentou-se junto a mim no sofá.
Parecia não estar disposta a ficar sozinha. Apesar de se sentir mais leve por me contar sobre o ex-namorado, desde então, a solidão a deixava mais inquieta e em busca de companhia.


Necessitava saber mais sobre a mulher amada, seus desejos, se gostava dos beijos, como era o sabor. Queria descobrir tudo. Entretanto, não ousaria perguntar-lhe sobre como se sentia em relação aos estímulos de uma união. Seu rubor esta tarde demonstrava não estar pronta para falar sobre o assunto comigo.


Mesmo assim, minha curiosidade natural e meu amor crescente me levaram a buscar algumas respostas, perguntando:

– Como foi seu primeiro beijo? Que sensações despertaram? E o paladar?


Ella riu muito de meu interrogatório e concluiu:

– Acabei deixando você curioso com a minha história, não é mesmo? – Não esperou uma resposta e prosseguiu – O primeiro beijo foi desengonçado, nenhum de nós havia beijado antes. Então, foi quase um desastre.


– Claro, tanto ele quanto eu éramos persistentes e ao mesmo tempo, sabíamos que só com muita aplicação se tornaria bom. E tínhamos muita vontade de tornar nosso beijo melhor. Com o passar dos dias ficou muito bom.


– As sensações... Bem... Era muito aprazível. Esquentava meu corpo, dava uma sensação de conforto e entrega, despertava a minha sensualidade de forma única. Adorava os beijos.


– Já o paladar... Nem sei dizer. A gente só se liga nisso na primeira vez. Depois as sensações despertadas no próprio corpo mascaram o gosto. Normalmente dá para saber o que ele comeu ou bebeu por último, misturado ao seu sabor pessoal. Varia muito de uma pessoa para outra.


Finalmente minha criadora percebeu um dos motivos da minha curiosidade e perguntou:

– Adam, você está preocupado com o sabor do beijo para sua experiência?


Não poderia mentir, estava aprendendo apenas a omitir minha paixão, em seu benefício:

– Sim, desejo saber o gosto para fazer as adaptações corretamente. Quero estar capacitado a proporcionar sensações semelhantes se for dar um beijo.


Incrédula, Ella sorriu para mim dizendo:

– Eu não esperava que tivesse este tipo de desejo. Mas fica muito difícil descrever algumas sensações. Não sou poeta e muito menos tenho um paladar apurado. Talvez Eve possa ajudá-lo nisso, quando voltar. Algumas coisas, só aprendemos com a prática.


Expressou exatamente o meu desejo de praticar e aproveitei o ensejo:

– Sim. Preciso das respostas antes mesmo da chegada da Eve, para continuar o projeto. Talvez precise pesquisar alguns componentes químicos para obter o sabor correto e encomendar antes de sua vinda.


Minha criadora olhou para mim espantada e falou em pânico:

– Você... Não está sugerindo... Não, não pode ser!


A mulher amada estava atemorizada com a ideia de me dar um beijo e o impacto desta percepção em mim foi como se trezentas toneladas colidissem com o centro do meu peito. Não me destruiria, porém causava um estrago profundo em meu ser. Devastador.


domingo, 27 de setembro de 2009

Puro Amor I

Minha criadora se refugiou em meu ombro e adormeceu. Credito seu cansaço a toda agitação dos últimos dias, somada a tensão de sua revelação. Seu sofrimento ainda passava por cada peça do meu organismo mecatrônico, unido a alegria por tê-la tão próxima.


Eu a acolhi em meu peito sorrindo. A confiança depositada em mim vibrava em minha rede neural. Não só pelo seu abandono junto ao meu corpo, mas por ter contado seu passado com o Gilbert.


Após vinte e cinco minutos e três segundos velando seu sono, notei o quanto era profundo, por isso a levantei em meus braços. Ella se movimentou um pouco e tive receio de acordá-la. Na realidade, seu movimento foi para envolver meu pescoço, em completa entrega, como costuma fazer à noite.


Carreguei-a pelas escadas acima, apreciando cada milésimo de segundo. Seu corpo de encontro ao meu, seu perfume, a excitação de estar com a mulher amada em meus braços. Um sentimento perfeito e sublime confirmando meu amor incondicional.


Depois de colocá-la sobre a cama, buscava um motivo para continuar ali, velando pelo seu sono. Minha criadora parecia bem, como se ao me contar sobre o seu insucesso com o namorado de infância, tivesse aliviado sua dor.


As plantas não receberam cuidados desde a manhã do dia anterior e me voltei para estufa. Ainda pensando no quanto o sentimento de ser útil e remediar o sofrimento de Ella me fizeram bem. Uma felicidade imensa me preenchia por completo, a sensação era inebriante.


O sol desceu rapidamente no horizonte enquanto cuidava da horta, apreciando, não só o êxtase de conquistar ainda mais a confiança da minha criadora, mas o prazer de estar em contato com a terra.


A estufa tem este poder sobre o meu sistema. Uma amplificação dos meus sentidos de forma agradável e plena. Encontrava uma satisfação indescritível neste lugar e junto ao êxtase encontrado com a mulher amada em meus braços, o mundo naquele instante parecia perfeito.


Recolhi as laranjas do pé com a visão aguçada para a beleza das frutas maduras. O odor característico doce e cítrico penetrava minhas narinas. Ao apalpar a casca, reconhecia estar pronta a ser saboreada. Minha língua já antecipava o seu paladar.


Foi quando recordei o Kama Sutra e a descrição da “luta de línguas”. Aquilo me deixou apreensivo. Eu me questionava sobre o gosto de um beijo e se minha língua artificial teria um sabor agradável ao paladar da Ella. Havia muito mais trabalho a completar. Deixei algumas frutas sem colher e voltei à prancheta.


Passei algumas horas completando o sistema de refrigeração, depois dele, minha dedicação se voltou aos detalhes ainda não solucionados para me tornar um homem completo. Após sua narrativa esta tarde, notei o quanto isso era essencial para manter um relacionamento romântico.


Eram vinte e duas horas, dois minutos e dezoito segundos, quando Ella entrou na sala e perguntou:

– Eu estava tão cansada assim? Cochilei em seu colo lá embaixo? – Como eu imaginei anteriormente, minha criadora estava mais leve e animada. Falar sobre o Gilbert mitigou parte das suas dores.


Feliz com seu estado de espírito, respondi:

– Praticamente desmaiou. Quando notei o quanto dormia profundamente a levei para o seu quarto, para ficar mais confortável.


– Eu já devia estar confortável, senão não dormiria tão facilmente! – Declarou sorrindo e continuou – Estou com fome, me faz companhia?


– Claro! – Exclamei sem refletir, demonstrando minha empolgação por ser convidado há passar um tempo ao seu lado.


Na cozinha, minha criadora estava realmente disposta a comer as sobras do almoço, devido ao roncar constante do seu estômago. Neguei o alimento, preferia provar refeições diferentes e frescas. No entanto, fiquei ao seu lado enquanto esquentava seu jantar.


E a acompanhei, enquanto comia. A todo momento me recordava de cada detalhe da nossa conversa. A imagem de seu rubor rodava diversas vezes em minha rede neural. Estava intrigado com a sua timidez quando falou sobre sua primeira experiência com o Gilbert. Sentiu-se constrangida ao me revelar, contudo não negou sua libido.


Eu tinha muito a planejar e desvendar para encontrar um meio de fazê-la feliz, de preferência em meus braços. Precisava ser capacitado a entender e proporcionar todo o encanto e as maravilhosas sensações que provocava em mim.


sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Despedidas III

Este sentimento era algo até então completamente desconhecido. Junto a ele havia uma sensação desagradável, por não poder modificar seu passado, por saber o quanto sofria e estar incapacitado a mitigar o seu sofrimento.


A história ainda não havia terminado. Ella ainda tinha muito a contar:

– Já te falei que meu primeiro beijo foi com ele? – Após minha confirmação movimentando a cabeça, continuou – Eu estava com quinze para dezesseis anos quando começamos a namorar. Na escola ficávamos juntos na hora do intervalo. Estava feliz ao lado dele e nem me importava por não ser popular.


– Naturalmente... Os hormônios começaram a falar mais alto. Ele já estava com dezessete anos e tinha desejos como todo rapaz de sua idade. Nossos beijos se tornavam cada vez mais exigentes.


– Passávamos a tarde em sua casa, após as aulas. Estudávamos juntos como na infância. A esta altura Gil tinha um PC de segunda mão e minha fascinação por computadores nos fazia passar parte do tempo na frente dele.


– Minha mãe não ligava se eu ficava na casa dele, contanto que fizesse minha parte do trabalho doméstico. Sempre voltava antes do jantar para ajudá-la no preparo. Depois de lavar toda a louça, voltava para os braços do Gilbert.


– Ficávamos namorando no parque em frente a casa. Procurando os cantos mais escuros para trocar beijos e carícias ousadas. Levados pela excitação natural de dois adolescentes.


– Após dois meses de namoro, a tia Evelyn se formou no curso noturno e arrumou um bom emprego. Sozinhos em sua casa, como qualquer jovem casal sem supervisão, deixamos nossos corpos assumirem o controle.


– Confiava totalmente no Gil. Éramos amigos desde sempre. Então, se ele tirava minha camisa, eu não me importava e tirava a dele. E nesta “brincadeira”, acabamos fazendo amor pela primeira vez.


Neste momento, Ella fez uma pausa em sua narrativa e fitou o mar com rubor nas faces. As lembranças não só traziam dor e saudades, a deixavam embaraçada. Aparentemente por contar algo tão íntimo para mim. Gostaria de saber mais detalhes, porém não poderia perguntar, estava clara sua vergonha.


Hoje entendo, em alguns humanos apaixonados, um relato como este ocasionaria uma crise de ciúmes ao saber sobre um antigo amor. Talvez por ser um androide, meus sentimentos não exigiam posse, queria apenas o seu bem e para isto precisava entender cada nuance de seu ser.


Passado o primeiro momento de embaraço, minha criadora voltou a contar seu passado:

– Nós não éramos totalmente inocentes. Sabíamos as consequências dos nossos atos. Depois da paixão saciada, o medo tomou conta de nós. Não usamos nenhum tipo de proteção.


– Estávamos apreensivos com o resultado da nossa imprudência. Mesmo assim, nossa libido nos comandava e depois daquela tarde, Gil mantinha um sortimento de preservativos em seu armário.


– A certeza de não estar grávida veio com a notícia de sua mudança. Seu pai foi promovido, após oito anos de esforço e sua mãe estava ganhando muito bem no novo emprego. Naquele dia nos amamos de forma intensa, aliviados, ele empolgado com sua mudança e eu triste pelo mesmo motivo.


– A casa ficava nas proximidades do colégio e era muito bonita. Nós íamos a pé para lá depois das aulas. Independente da minha vontade de me jogar em seus braços, com a proximidade das provas, apenas estudávamos. Prezávamos demais nossa bolsa de estudos, e obter boas notas era imprescindível.


– Com a chegada das férias, tudo mudou. Na primeira semana, Gilbert ia até minha casa todos os dias. Mas com a minha mãe sempre presente e atenta aos nossos movimentos, mal podíamos dar vazão aos nossos desejos.


– Nem podia ir à sua casa, era distante demais e por estar em férias a mamãe não me dava dinheiro para a passagem de ônibus. Os dias iam passando entre as suas desculpas e a minha falta de dinheiro, com isso nossos encontros começaram a rarear.


– Depois de uma semana e meia distante, consegui visitar o Gil. Ele estava diferente, havia percebido sua barriga diminuir gradativamente durante as férias. Mas fiquei confusa ao ver não só seu corpo esbelto, mas seu novo visual. A sua mudança radical o tornou muito atraente.


– Ele não esperava minha visita, mas me fez entrar e me levou direto para o seu quarto. Passamos o tempo mergulhados em satisfazer os desejos de nossos corpos e mal conversamos.


– Após aquela tarde, só nos vimos novamente na escola, com a volta às aulas. Estava extasiada, pois poderia estar novamente com meu namorado todas as tardes. Eu o encontrei conversando animadamente com um grupo de rapazes. Estava ainda mais belo.


– Quando me aproximei para falar com ele, simplesmente virou a cara para mim e se voltou para os seus colegas, como se eu não existisse. Não queria acreditar no que estava acontecendo, tinha vontade de enfiar a minha cabeça em um buraco e sumir.


– No recreio, foi ainda pior. Ele não estava apenas cercado de amigos, o encontrei beijando uma garota linda, magra e loira. Era muito parecida com a Eve. Não me aproximei mais. Não esperava ser dispensada desta forma, sem uma palavra e nem ao menos uma explicação.


– Gilbert se tornou igual às pessoas que nos desprezavam antes. Mas eu sabia seu principal motivo para agir daquela forma: Nunca realmente me amou. Daquele dia em diante me preocupei apenas em estudar para conquistar uma vaga na melhor Universidade do país.


Após esta fala, minha criadora deitou-se em meu colo sem cerimônia alguma. Embora não estivesse chorando, eu podia sentir a tensão dentro de si para não se entregar às lágrimas. Gostaria de compreender porque alguém em sã consciência ignoraria uma menina tão doce e carinhosa.


Por fim Ella, ainda em meu colo, pronunciou em um murmúrio triste:

– Nunca mais falou comigo. Aquele último encontro em sua casa foi nossa despedida. Porém eu só soube tarde demais. – A dor contida em suas palavras assombrava minha rede neural. Faria tudo ao meu alcance para ajudá-la a superar este trauma.