Finalmente, Eve! III

Descarreguei o helicóptero, procurando distinguir dentre as caixas quais eram as de mantimentos, quais eram as dos moldes e as dos materiais eletrônicos para minha transformação. Primeiro, levei as compras para a cozinha e em seguida os alimentos que deveriam ficar na despensa do segundo pavimento.

Estava no corredor, carregando as malas da Eve para o quarto, quando ouvi sua voz do outro lado da porta:

– Vai me dizer que não ficou com ciúmes? – Embora não pudesse vê-las, visualizei as duas deitadas sobre a cama, aparentemente discutindo o beijo desta manhã.

Por uma fração de segundos, titubeei entre entrar ou deixar a bagagem no corredor, até ouvir a voz da minha criadora:

– Eve! De onde tirou esta ideia? – Continuou sem dar tempo para uma resposta – É claro que não... Só achei estranho... Ver minha melhor amiga beijando o mesmo cara que beijei há dois dias atrás... Não gostei só por isso... – A artista durante todos os períodos de hesitação da amiga só repetia: “Hum-hum”.

Percebi a minha indiscrição e deixei as malas no corredor, com a intenção de não escutar sequer uma palavra. Contudo foi impossível não ouvir a Eve dizendo:

– Quando você perceber que sentiu ciúmes do robozinho, me acorda! – Dizendo isso, encerrou o assunto.

Desci as escadas praticamente correndo. Não tinha o direito de estar ali escutando sua conversa. Um sentimento de culpa se abateu sobre mim. No entanto, a percepção de ter provocado ciúmes na Ella era gratificante.

Enquanto levava a caixa dos componentes eletrônicos para o escritório, avaliei as sensações provocadas desde a chegada da artista. Pela segunda vez naquele dia, notei sentimentos conflituosos dentro de mim. Passei a me questionar se o contato com um maior número de seres humanos não provocaria ainda mais tumulto em minhas emoções.

Só obteria uma resposta para a minha dúvida, se Ella seguisse a sugestão da amiga e fossemos todos juntos ao continente. Sentei-me a bancada para começar os ajustes dos sensores. Para conviver entre outros humanos, era essencial o término do meu trabalho. Além dos sensores que ficariam sob o polímero, precisava fazer um backup da minha programação e memória.

Estava iniciando o trabalho, quando a mulher amada entrou, dizendo:

– Precisa de ajuda?

Seu maravilhoso sorriso, seu olhar doce e seu perfume encantador preencheram o ambiente e não resisti a me levantar antes de responder:

– Ajuda extra é sempre necessária, quero terminar estes sensores hoje, para Eve poder preencher os moldes. Você não estava com ela?

– Está dormindo agora. Com o meu auxílio pode terminar isso antes mesmo dela acordar. Conheço bem Eve, com tudo pronto ela começa seu trabalho ainda hoje. Quando o polímero secar poderemos fazer as modificações na sua aparência.

De acordo com as especificações da artista a secagem do polímero acontecia em pouco mais de uma hora, dependendo da umidade relativa do ar. Eu não desejava perder nada ao ser desligado, por isso comentei:

– Eu devo salvar minha programação antes. Vou precisar de quatro horas, quarenta e nove minutos e vinte e cinco segundos.

– Adam, você pode fazer isso enquanto dormimos. Eve, mesmo que o produto garanta a secagem em uma hora, vai esperar vinte e quatro, se certificando da perfeição do trabalho. Não gosta de deixar nada mal acabado. Você vai ficar muito feliz com o resultado no final.

A curiosidade sobre como minha criadora se sentia em relação a minha metamorfose me fez questionar:

– E você não?

Um leve rubor coloriu suas faces antes de responder:

– Se eu vou ficar feliz com o resultado? Não tenho dúvidas quanto a isso... Sei que ninguém vai notar a diferença entre você e um humano quando Eve terminar. Até a textura é muito semelhante à pele humana.

– Adam... Eu queria te perguntar uma coisa... Mas vou entender se preferir não responder. Você gostou de beijar a Eve? – Sua hesitação em cada frase e a última dita de supetão, impingiu às suas faces um tom completamente rosado.

A pergunta em si, não dizia muita coisa. Contudo o seu rosto corado me agraciava com a percepção de estar muito interessada em minha resposta:

– “Gostar” do beijo da Eve? O gosto era realmente bom, mas foi um beijo sem muitos atrativos, além de ser agradável.

A cor em seu rosto não se modificou, quando mais uma vez me questionou:

– Sério? Você não sentiu nada demais ao beijar a Eve? Mas ela é tão linda... Sabe das coisas, tem legiões de homens bonitos e famosos atrás dela. Tem certeza que não sentiu nada demais?

Procurei ser o mais claro possível, para não deixar dúvidas quanto aos meus sentimentos em relação a artista:

– Eve pode ser tudo isso e até mais. Eu admiro seu talento e sua personalidade vivaz. Gosto da sua companhia e reconheço a sua beleza. No entanto, não penso nela de outra forma senão a de uma boa amiga.

Mesmo assim, Ella se mantinha insegura e ainda ruborizada, perguntou:

– Mas Adam... Não entendo... Pensei que esta vontade toda de se transformar era por causa dos seus sentimentos e nutrisse algo mais profundo pela Eve. Todo mundo se apaixona por ela!

Minha criadora estava totalmente equivocada quanto as minhas motivações. Acreditava sinceramente em não ter qualquer atrativo. A mulher amada não estava pronta para ouvir sobre quem era o centro da minha admiração. E só reafirmei que meus sentimentos pela artista eram apenas de uma boa amizade.

Ella ficou em silêncio após a minha afirmação, finalmente nos sentamos para trabalhar e passamos toda a manhã, entregues às nossas tarefas. Havia uma questão no ar e minha criadora preferiu ignorar. No entanto, o colorido permaneceu em suas faces por mais doze minutos e vinte e três segundos. Estava claro para mim, em breve, a mulher amada entenderia ser a única a atrair os meus sentimentos mais profundos de amor, paixão, ternura e desejo.