
Fitei-a e reconheci em seu semblante o aflorar de sentimentos ternos ao se imaginar mãe. Eu a amava desde praticamente o meu nascimento, contudo sabia da necessidade dos humanos de procriarem. Procurava não pensar no futuro e na minha inaptidão para juntos formarmos uma família, como era o esperado em qualquer união. Minha maior preocupação era se minha namorada desejava ter seus próprios filhos.

Ella olhou para mim movimentando os braços, como se não soubesse onde colocá-los. Na realidade estava excitada e animada com a ideia de criar a prima, ao concluir:
– Se eles não implicarem por eu ser solteira e morar numa ilha deserta, eu bem podia criar a menina. O que acha?

Estava clara a sua vontade de adotar a garotinha. Sua pergunta, embora não me incluísse diretamente, indicava seu desejo em me envolver na decisão. Então fiz a proposta, acreditando receber uma resposta afirmativa:
– Não importa onde você mora, será uma excelente mãe em qualquer circunstância. Quanto a ser solteira, podemos resolver isso com facilidade. Sou humano para todos os efeitos da lei. Posso ser seu marido e aprender a ser um pai para pequena Emily.

A mulher amada me observou por dois segundos, suas feições eram marcadas pela admiração. Almejava meu pedido e sua insegurança a impediu de fazê-lo. Precisava ter certeza das minhas motivações e me questionou:
– Você realmente deseja se casar comigo e ser pai? – titubeou por meio segundo antes de completar – Adam, você desejaria casar comigo, independente da Emily?

Era uma pergunta clara, minha resposta seria negativa para sua última questão. Nunca a prenderia a mim por laços tão fortes, devida a minha incapacidade de procriar. Procurei esclarecer minha opinião, assegurando os meus sentimentos:
– Ella, sei o quanto nos amamos, contudo quem deveria ser contra a se casar comigo é você. Assinar um contrato afirmando estarmos decididos a viver este amor de acordo com as leis humanas é um privilégio para mim. Minha dúvida é se você está disposta a abdicar de gerar uma vida em seu ventre.

Em uma fração de segundo, a mulher amada se atirou de encontro a mim, enlaçando minha nuca com o braço direito e respondeu:
– Se isso é um pedido de casamento, eu aceito! – em um só fôlego continuou – Adam, eu não abdicaria de você para ter um filho, não desejo ter filhos com outro homem. Ainda mais agora que posso realizar meus dois sonhos, me casar por amor e criar uma filha ao seu lado!

Descobrir o quanto eu era importante para a minha namorada, mobilizou meus circuitos e ativou novas conexões internas. Meus sentidos se ampliaram ao máximo, percebi a vibração do seu corpo de encontro ao meu, o som das batidas do seu coração, o aroma delicioso da sua pele. Em um impulso puramente emocional a beijei confirmando o nosso compromisso.

Quando afastei meus lábios dos seus, Ella me pediu:
– Adam, eu acho melhor não contarmos do casamento para o meu pai hoje. Sei que ele nos abençoou, mas no fundo ainda não digeriu tudo. Na semana que vem, voltamos aqui e contamos a ele. Tudo bem para você?

Não havia motivos para discordar, minha namorada tinha toda razão. Era muita informação para um ex-alcoólatra compilar em um mesmo dia. Descobrir o amor da filha por um androide foi um grande impacto, saber do casamento eminente entre nós seria um choque ainda maior.

Ouvi a porta do banheiro se abrir e me afastei da mulher amada concordando manter em silêncio a nossa felicidade. Hector parou próximo às cortinas divisórias e disse:
– Adorei as roupas, docinho! – Estava vestido com uma calça marrom e blusa azul de estampa xadrez, peças escolhidas por Ella na tarde anterior.

Ao se aproximar perguntou:
– Então filha, vocês se decidiram? Vão adotar a Emily? – Demonstrava grande apreensão por nossa resposta.

Minha namorada respondeu sem hesitação:
– Vamos conversar com a assistente e descobrir se há possibilidade de ficarmos com a Emily na Ilha, pelo menos enquanto ela não entrar em idade escolar. Talvez não seja tão fácil, mas estamos dispostos a adotar a menina, paizinho!

Hector estava animado com nossa decisão, voltou-se para nós dois ao comentar:
– Nem sei como agradecer! Afinal, eu me sentia culpado por não cuidar da menina. Mas agora sei que vai ter bons pais e ser bem criada.

Não havia motivos para sua gratidão, porém não nos deu tempo de replicar, olhou para mim e completou:
– Eu descobri o segredo de como tratar uma garotinha quando vi “A Princesinha*”. Durante o filme a órfã afirma que toda menina é uma princesinha e merece ser tratada como uma!
*A Princesinha é um filme que teve várias refilmagens no cinema e na televisão. Sua primeira versão foi filmada em 1917, a versão mais famosa é de 1939 com Shirley Temple no papel principal e a mais recente é de 1995.

Sua filosofia aparentemente era simples e notei a importância da afirmação para ele. Por isso agradeci o conselho e pedi por maiores detalhes, queria descobrir como aplicar. Hector inspirou e conservou o amor da filha, apesar de todas as dificuldades pelas quais passou. Desejava infundir o mesmo sentimento na pequena Emily.

Depois de explicar como aplicou a ideia, mudou completamente de assunto e nos questionou sobre a refeição:
– Ontem pesquei um robalo e de manhã peguei algumas abobrinhas na horta que podem ser o nosso almoço. Mas também podemos almoçar no refeitório com os outros.

A mulher amada decidiu rapidamente:
– Eu faço o almoço, paizinho. Assim ficamos mais a vontade. – Uma característica da Ella era sua introversão, isso nunca mudaria. Preferia estar junto aos seus conhecidos a se misturar e conhecer novas pessoas.

Enquanto minha namorada se dedicava ao preparo do alimento, seu pai me fez sentar a mesa para conversarmos. Seu discurso era sobre as maravilhas de ter uma garotinha em casa. Explicou como agiu com a filha em cada situação, seus erros e acertos.

A refeição transcorreu muito animada e estava deliciosa. Hector parecia aceitar a convivência com um androide de forma natural e desprovida de preconceitos. Provavelmente contagiado pela felicidade de sua filha ou pelo desejo de ver a sobrinha bem cuidada. Quaisquer que fossem suas motivações, o mais importante era a sua aproximação.

Após o almoço saímos para um passeio à pé pela propriedade, caminhamos à beira do lago e por parte do bosque a circundá-lo. Tivemos uma visão geral da sede e das outras construções. O clima da região era totalmente diverso da Ilha, a temperatura era dez graus mais baixa. Não havia a brisa marinha e o aroma adstringente provinha da terra mesclada ao perfume exalado por árvores diversas.

Ao voltarmos à sede, selecionamos três varas de pescaria. Ella já sabia pescar, mas seu pai precisou me ensinar como colocar a isca, girar o molinete e lançar o anzol, por fim nos levou ao seu lugar favorito de pesca. Fiquei admirado quando fisguei o primeiro peixe àquela tarde.

Como um grande amante da natureza, Hector disse ser o suficiente para o seu consumo e sugeriu pararmos, não achava certo pescar além. Faltavam vinte minutos e doze segundos para as cinco horas da tarde, quando nos sentamos próximos a piscina. Aproveitamos o restante do tempo para obtermos mais informações sobre a Emily e seus pais.

Exatamente às quatro horas e cinquenta e cinco minutos, avistei o empregado de Eve estacionando o carro em frente à porta principal da fazenda. Quando informei os dois sobre o fato, notei a decepção em seus semblantes. Queriam passar um pouco mais de tempo juntos, mesmo assim se levantaram resignados.

Fomos à recepção e o rosto desapontado da mulher amada continuava a rodar em minha tela. Encontramos George que logo se mostrou a nossa disposição:
– A hora que quiserem partir, estou às ordens. – Ella agradeceu e começou a se despedir.

Olhei para o lado e vi dois homens sentados nos sofás da sala. Ao notar a presença da minha namorada, o mais velho se levantou e caminhou em nossa direção. Era o Dr. Yoshida, seus olhos rasgados e seus cabelos negros revelavam a ascendência japonesa, assim como o seu nome, o qual escutei anteriormente do pai da mulher amada.

Veio cumprimentar Ella e agradecer as doações feitas à instituição. Por fim disse ter em Hector um ótimo aliado junto aos outros internos, principalmente na manutenção da fazenda.

Minha namorada ouviu tudo com serenidade, estava disposta a aceitar a realidade do seu pai. Ele não desejava sair e muito menos mudar-se para a Ilha. Um dia ele se sentiria mais seguro e passaria algum tempo conosco. No entanto, Hector fizera daquela fazenda o seu lar.

Quando o psiquiatra voltou a se acomodar no sofá, a mulher amada sorriu para mim conformada com o desejo de seu pai. Os dois se despediram com um novo abraço, trocando palavras de carinho e promessas de retorno em breve.

Em seguida, Hector se virou para mim e disse:
– Acho que posso contar com você para cuidar das minhas princesas, não é mesmo? – Sua pergunta demonstrava não estar de todo convencido desta possibilidade.

Por isso eu respondi com decisão:
– Vou cuidar das duas com muito amor. – Após a minha resposta ele me ficou mais tranquilo e caminhou conosco até o carro.

Dentro do automóvel, Ella estava pensativa e procurei não a incomodar, eu sabia o quanto era difícil nos despedirmos de quem amamos. Enquanto o carro avançava, notei Hector ao lado de um cão e de Anne. Olhava fixamente para nós, como se assim pudesse manter a filha ao seu lado por mais tempo. Ao virarmos a curva, eu não mais o avistei. Contudo tive a nítida sensação de sua atenção estar voltada para nós durante toda a viagem de volta. Havia uma ligação extremamente forte entre pai e filha. Ansiava por obter este tipo de conexão com Emily.