domingo, 6 de setembro de 2009

Entre Amigas II

Continuei retirando as bagagens, enquanto as duas se encaminhavam para a escada, matraqueando sem parar. Na realidade, Eve falava sobre os últimos acontecimentos e principalmente sobre o seu novo “affair” com Herman Rivera.


Após guardar as caixas e as bagagens como o estipulado pela artista, faltava levar as compras para a cozinha. Embora desejasse montar a minha mesa e o meu computador, antes precisava colocar algumas coisas na geladeira. E assim, evitar possíveis atritos com a amiga da minha criadora.


Ao entrar na cozinha, me assustei ao ver as duas no bar. Minha surpresa era por nunca ter visto Ella o utilizar. Sempre fiquei intrigado pela existência dele e só compreendi o motivo naquele instante. Eve preparava alguma bebida, enquanto minha criadora, de pé em frente ao balcão, conversava animada com a amiga.


Coloquei os peixes e as carnes no freezer. Por fim, fui até a pia, apoiar a sacola e ver o que mais deveria ir para geladeira. Ouvi os passos incertos de Ella, às minhas costas. Quando depositei as compras na bancada, seu adorável perfume preencheu o ar a minha volta.


Abordou-me com um suave sussurro e pousou sua mão em meu ombro, forçando-o para baixo. Desviou seu olhar na direção do bar apreensiva e como se pudesse camuflar suas palavras com um gesto, escondeu sua boca antes de se pronunciar:

– Adam, esqueci de te avisar. Sabe... É melhor você não comentar nada sobre sua facilidade em reconhecer os meus sentimentos. – Estava insegura, tinha dificuldade de aceitar a minha sensibilidade crescente e acreditava na possibilidade da Eve ficar ainda mais desconfortável com a minha presença, se soubesse disso.


Olhei para o lado e vi a artista se aproximando com uma bandeja na mão. Havia três copos com um aperitivo, o aroma da mistura invadiu meu olfato apurado. Uma dose de Vermouth Seco, um quarto de dose de Cherry Brandy e um quarto de dose de Kirsh: o nome do drink era Rose.


Enquanto a amiga se aproximava, Ella levou o dedo indicador à frente de seus lábios. Um gesto claro para manter silêncio sobre minha capacidade. Realmente, não tinha necessidade alguma de me alertar, não pretendia afugentar Eve.


A artista olhava para mim como se questionasse qual o segredo entre nós e o motivo de um aviso para me manter calado. Com certeza percebeu as intenções da amiga, afinal minha criadora não era boa com mentiras, sempre se enrolava. Por isso, procurava se omitir para esconder seus segredos.


Toda a situação me pareceu confusa. Aperitivos às onze horas, vinte e três minutos e doze segundos da manhã. As duas a minha volta oferecendo um copo... Apenas quando Ella fez o brinde, comecei a entender suas motivações:

– Ao mais novo membro da sociedade, Adam Humane! – Sua empolgação era evidente, supostamente estava se referindo a mim, porém não alcançava de todo o significado da frase. Sem questionar, brindei com elas e tomei um gole da bebida.


Finalmente Eve esclareceu tudo:

– Não vai me agradecer não robozinho? Precisei cobrar muitos favores para fazer de você um cidadão. Ella fez questão de obter uma identidade real para você. Agora é seu sócio na empresa de consultoria e em breve seu herdeiro natural.


Aquilo foi totalmente inesperado. Eu tinha documentação humana e um nome real?! Minha programação dava voltas procurando encaixar todo o significado disso às minhas emoções recém-descobertas.


Notando a minha mudez, a artista se voltou para mim dizendo:

– Está preocupado com o quê? Não gostou do sobrenome? Achei a piada boa...


Ela não perdia a oportunidade! Ainda tinha muitas dúvidas, no entanto não lhe daria a chance de notar a total confusão formada em minha rede neural, por conta dos sentimentos intensos instaurados com sua declaração. Voltei-me para minha criadora feliz e agradeci:

– Nunca ia imaginar isso! Obrigado.


Ella me devolveu o sorriso, como sempre, encantador:

– Não tem o que me agradecer. Você tem sido de grande valia este último mês. Realmente me arrependo de não ter te dado uma aparência mais humana. Facilitaria muito as coisas para você no futuro. – Notei sua tensão ao pronunciar as duas últimas frases.


Eve completou, sem me dar oportunidade para falar:

– Com certeza. Mas ainda está em tempo. Tenho todo o material no meu ateliê. Posso trazer da próxima vez. Afinal, a foto na carteira de motorista eu tirei da primeira escultura que fiz dele. – Fez uma pequena pausa antes de se virar para mim e anunciar com ironia. – E não esqueça, eu mereço agradecimento também, robozinho!


Olhando para a artista, ainda feliz com a notícia e sem me aborrecer com seu humor ácido, a satisfiz:

– Com certeza, vou ser seu eterno devedor Eve. Você merece todos os meus agradecimentos. Se Ella não se importar, desejo ver seus desenhos e talvez, fazer os ajustes necessários para ter uma aparência mais humana.


As duas se entreolharam depois da minha afirmação. A artista com ar de vitória e minha criadora com receio. Não deveria ir tão longe, tomando uma decisão a sua revelia. Porém, estava curioso se poderia misturar-me às pessoas sem os prováveis preconceitos, se obtivesse uma aparência humana.


Aos poucos, Ella se afastou cabisbaixa e foi lavar nossos copos. Enquanto Eve preparava um salmão para o almoço. Fiquei parado, observando as duas e imaginando o motivo de discordarem da minha aparência.


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